Levantamento sonoro pioneiro aponta que crimes e prejuízos ambientais ganharão força na última grande reserva de Mata Atlântica do interior do país se projetos tramitando no Congresso forem aprovados
Pesquisadores denunciam que abrir uma via de terra ou asfalto aumentará caçadas e outros impactos no Parque Nacional do Iguaçu. Em busca de capital político, congressistas ignoram decisões judiciais e seguem assinando projetos para cortar ao meio a última grande reserva de Mata Atlântica do interior do país.
Um dos primeiros levantamentos sobre potencial de caça usando sons em todo o mundo revela que construir uma estrada de 18 quilômetros cortando o Parque Nacional do Iguaçu, no oeste do Paraná, facilitará a matança de animais nativos. Propostas para a obra tramitam na Câmara e no Senado.
Durante seu doutorado junto à Universidade Nacional de Córdoba (confira o quadro), aprovado no ano passado, a bióloga Julia Martinez Pardo espalhou gravadores atentos a disparos em 91 pontos de florestas entre Brasil, Argentina e Paraguai. Tiros foram captados em 43 locais (47%).
A maioria dos registros foi em estradas ou trilhas desprotegidas e ao longo de cursos d'água, mas também dentro e nos arredores de reservas ambientais. No Parque do Iguaçu, tiros foram gravados inclusive desde o antigo leito da "Estrada do Colono". A via de terra está fechada pela Justiça desde os anos 1980.
Em seguida, Julia Pardo usou fórmulas científicas para estimar as chances de caçadas dentro e fora das áreas naturais. Ela concluiu que o crime cresce quanto mais fácil for o acesso de pessoas ao interior de locais preservados (imagem abaixo), especialmente por rotas pouco ou nada fiscalizadas.
Por tudo isso, a pesquisadora pede para que não sejam abertas novas estradas nas unidades de conservação regionais.
"A via teria um impacto negativo muito alto na conservação da fauna do parque brasileiro, inclusive de onças-pintadas. Uma estrada nunca é sustentável. Não importa que tipo de estrada seja, ela gera efeitos como aumento de atropelamentos, da caça e da fragmentação de ambientes para numerosas espécies", ressaltou a bióloga.
Ao mesmo tempo, pesquisadores de universidades federais e estaduais, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação reforçam que forçar a abertura de uma estrada no parque brasileiro causará estragos ainda maiores. O alerta é de estudo publicado na revista científica AMBIO (Suécia), em julho de 2020.
"Os danos serão sentidos ao longo de gerações. Modificar ambientes naturais traz perdas significativas para animais e plantas, aumenta atividades ilegais e afeta serviços ecossistêmicos. Chuvas, clima, controle biológico e polinização (de plantas nativas e comerciais) podem ser prejudicados pela modificação da paisagem natural", destacam os especialistas. Eles pediram para ser identificados coletivamente.
Já em parecer técnico de setembro de 2019, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade avisou que abrir uma estrada no Parque do Iguaçu afetará diretamente 54 hectares da reserva e que ela será invadida por plantas exóticas e animais domésticos. O parque também sofrerá com poluição sonora e dos escapamentos dos veículos e há risco de derrames de químicos tóxicos transportados pela via.
"A abertura da estrada implicaria em um impacto considerável no Parque nacional do Iguaçu, unidade de conservação de proteção integral, reconhecida como o Sítio do Patrimônio Mundial e considerada uma das maiores maravilhas do mundo, como o agravante dos impactos relativos a fragmentação da paisagem e risco a fauna", descreve o documento obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação.
Ponta do lápis
Brasil, Argentina e Paraguai proíbem a matança de animais selvagens, mas na região muitos caçam para comer, vender carnes exóticas e até por lazer. Catetos, queixadas e outras presas de onças-pintadas estão sempre na mira. Sem o alimento natural, os grandes felinos podem ser mortos ao atacar rebanhos. Também são caçados como troféus ou para o tráfico de peles e dentes.
Os números não mentem. Forças policiais e ambientais apreenderam 195 itens para caça no Parque do Iguaçu só nos últimos 2 anos, como armadilhas, jaulas, acampamentos, barcos, cevas e saleiros para atrair animais. Também confiscaram cutias, veados e outros bichos mortos, armas e cartuchos disparados. As 31 pessoas detidas no período estão livres.
Especialistas também discordam de uma queixa da população regional quanto ao alargamento de distâncias entre municípios desde o fechamento da chamada "Estrada do Colono".
Na prática, o trecho entre Capanema e Serranópolis do Iguaçu passou de 50 quilômetros para 180 quilômetros sem o atalho da via ilegal. A "Estrada do Colono" foi recoberta pela verde nas últimas três décadas. Mas, na ponta do lápis, o caminho mais curto pode não ser o mais rápido ou barato, sobretudo para cargas. Na região se produz especialmente soja, frangos e suínos.
"Segundo propostas, a estrada seria usada apenas de dia e por carros pequenos, com velocidade controlada e pagamento da travessia (do Rio Iguaçu) via balsa em horários determinados. Cargas seguiriam pela rota normal, sem redução de custos. Há sérias dúvidas de que o trajeto pelo parque seja mais rápido se forem respeitadas as normas em discussão", destacaram os cientistas que assinam o trabalho na AMBIO.
Com tais cartas na mesa, eles apontam alternativas à abertura de uma estrada no parque brasileiro. Pelo menos 20 hectares de florestas seriam eliminados pela obra.
Segundo eles, é possível facilitar e baratear o trânsito de veículos duplicando rodovias ao redor da reserva e isentando ou barateando pedágio para moradores locais. Outras ações para aquecer economias regionais são ampliar o turismo ambiental e rural em áreas públicas e privadas no entorno do Iguaçu e reforçar a produção e venda de orgânicos.
"Há maneiras para se reduzir os problemas sem abrir a estrada, mas parece que destruir uma floresta é sempre o caminho mais fácil e lucrativo. Benefícios individuais ou de pequenos grupos não podem se sobressair a interesses coletivos. A população deve perceber a importância das áreas protegidas e cobrar alternativas sustentáveis de lazer e de renda", ressaltaram os pesquisadores.
Marcha legislativa
Projetos de lei para abrir uma via no Parque do Iguaçu alterando a legislação federal para criar a figura das "estradas-parque" tramitam há duas décadas no Congresso. Se forem aprovados, reservas ambientais no país todo poderão ser retalhadas por rodovias, perder tamanho ou capacidade de manter espaços naturais em bom estado.
Um texto está pronto para votação na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Uma proposta do deputado federal Vermelho (PSD-PR) tramita na Câmara. Se forem aprovados, dependerão de sanção presidencial para se tornarem leis federais.
Reunido com o parlamentar em 10 de março, o presidente Jair Bolsonaro renovou seu apoio à obra. Informe distribuído pela assessoria de Vermelho e replicado pela mídia afirma que Bolsonaro ligou e pediu apoio político e recursos para a empreitada ao diretor-geral da Itaipu Binacional, o general Joaquim Silva e Luna.
A empresa não confirmou à reportagem o contato de Bolsonaro e disse não estar envolvida em projetos para abertura de uma estrada no parque nacional. A O Eco também comentou que a obra "precisa ser devidamente estudada pelas entidades representativas de diferentes segmentos da sociedade organizada, sobretudo das áreas de meio ambiente e de turismo".
Mas em julho de 2019, Silva e Luna declarou à Rádio Cultura de Foz do Iguaçu (PR) que a empresa poderá arcar com a estrada. O aceno veio após reunião com o governador Ratinho Junior. O diretor-geral de Itaipu não tem formação em qualquer tema ligado à Biologia ou conservação da natureza, mas acredita que a "Estrada do Colono" pode ser sustentável. Confira a sonora abaixo.
A Itaipu Binacional financiou uma segunda ponte entre o Brasil e o Paraguai, com 760 metros e orçada em R$ 323 milhões. A obra segue. Como mostramos em março de 2020, uma ponte de 600 metros ligando a "Estrada do Colono" à outra margem do Rio Iguaçu foi estimada em pelo menos R$ 50 milhões pelo Ministério Público Federal.
Enquanto isso, o cenário político federal segue azeitando a aprovação de propostas anti-ambientais.
Capitaneada pelo "Centrão", bloco político fisiologista sempre buscando benefícios de qualquer governo, a Câmara está mobilizada para liberar a mineração em terras indígenas, afrouxar o licenciamento ambiental e legalizar a grilagem de terras públicas. Reservas ambientais e a conservação da natureza são alvos de aproximadamente 40 propostas no Congresso, levantou este repórter.
Vários projetos cruzarão por uma Comissão de Meio Ambiente da Câmara liderada pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP). Membro da tropa de choque bolsonarista, ela defende o uso indiscriminado de armas e acusou ONGs de atearem fogo na Amazônia, sem provas. A parlamentar também mentiu em uma live sobre preservação da Amazônia, desmatamento e regularização fundiária, informou o Fakebook.eco.
Além disso, um balanço da União Internacional para a Conservação da Natureza mostra que o Brasil é um dos países do mundo onde a marcha-a-ré socioambiental tem mais força durante a pandemia de Covid-19. A lista inclui o menor orçamento em 21 anos para a pasta ambiental, ataques redobrados a defensores ambientais e o desmonte de órgãos e ações de fiscalização.
Tal realidade política põe em xeque os projetos de lei no Congresso que pintam com cores sustentáveis a abertura de uma estrada através do Parque do Iguaçu, ressalta a pesquisadora Julia Pardo. Para ela, a grande maioria dos políticos não tem um interesse genuíno na conservação da biodiversidade, como pede a Constituição Federal.
"O fato de que eles prometem a sustentabilidade deste caminho e, ao mesmo tempo, fazem o possível para diminuir os recursos destinados à conservação ambiental, indica uma falta de coerência. Me parece que eles estão tentando silenciar os vários grupos conservacionistas para que possam construir esta estrada, mas duvido muito que, se a fizerem, ela seja sustentável", finalizou.
UC:Parque
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