Áreas da Amazônia cujo desmatamento levou a ações na Justiça foram queimadas neste ano

O Globo, Sociedade, p. 41 - 15/09/2019
Áreas da Amazônia cujo desmatamento levou a ações na Justiça foram queimadas neste ano
Amazônia: áreas cujo desmatamento levou a ações na Justiça foram queimadas neste ano
Levantamento da PGR feito a pedido do GLOBO mostra que fogo que ardeu na floresta em 2019 consumiu partes que já haviam sido exploradas ilegalmente em anos anteriores

Vinicius Sassine

O fogo que ardeu na Amazônia em 2019 consumiu áreas que já haviam sido exploradas ilegalmente em 2016 e em 2017, e cujos supostos desmatadores foram acionados na Justiça pelo Ministério Público Federal (MPF). É o que revela um levantamento inédito da Procuradoria-Geral da República (PGR) elaborado a pedido do GLOBO.

O cruzamento de dados feito por peritos da PGR mostra a ocorrência de focos de queimadas em um terço das áreas desmatadas na Amazônia que resultaram em ações contra desmatadores na Justiça.

Para a PGR, trata-se de uma evidência clara de que, apesar de os suspeitos passarem a responder a processos em varas federais, eles continuaram a desmatar e a fazer uso das mesmas áreas por meio do fogo.

O número de queimadas na Amazônia neste ano é o maior desde 2010, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais ( Inpe ). Até anteontem, já eram 56,6 mil focos, 42% a mais do que no mesmo período de 2018. O fogo no bioma gerou uma crise internacional para o governo de Jair Bolsonaro.

As queimadas na região têm dinâmica complexa, principalmente pela dificuldade de localização do agente por trás do fogo e da determinação da característica da área incendiada - se é um terreno já desmatado ou se o fogo está sendo usado em novos desmates.

O MPF passou a investigar os incêndios em diversos inquéritos abertos desde o início da crise. Uma das hipóteses, aventada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, é a existência de uma ação criminosa "orquestrada".

O levantamento da PGR, que ajuda a lançar luz sobre a situação no bioma, resultou numa nota técnica enviada à reportagem, com o cruzamento de alguns dados, a base deles sendo os do programa "Amazônia Protege", coordenado pela Câmara de Meio Ambiente da PGR. Este programa já resultou em 2.539 ações civis públicas na Justiça contra 2.882 réus, suspeitos de desmatamentos ilegais.

A primeira leva de ações usou imagens de satélite do Inpe referentes aos dados de desmatamento de 2016. A segunda, de 2017. Nos dois casos, o sistema do Inpe usado é o Prodes (Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia), que traz os dados oficiais e anuais de desmatamento.

Para o levantamento pedido pelo GLOBO, os peritos cruzaram esses dados que embasaram as ações com os de focos de incêndio em 2019.

Em processo de 'limpeza'
Foi aí que ficou constatado que as queimadas deste ano incidiram em um terço de todos os desmatamentos de 2016 e 2017 alvos de ações judiciais. Das 2.539 áreas desmatadas com mais de 60 hectares que resultaram em ações na Justiça, em 816 - 354 abertas em 2016, 462 em 2017 - foram detectados sinais de fogo.

"A presença de focos de calor em áreas alvos do Amazônia Protege é um forte indicativo de que estas áreas estão em processo de 'limpeza' para utilização e expansão", escreveram os peritos na nota técnica enviada à reportagem.

"A ocorrência de queimadas nessas áreas pode ser um indicativo de que os desmatamentos ainda estão em processo de expansão e de uso das áreas já abertas", continua a nota. Eles ressaltam que as áreas desmatadas e com focos de calor estão "nos principais eixos de expansão de desmatamento na Amazônia Legal", ou seja, na BR-163, o Sul do Amazonas, a área de preservação ambiental (APA) Triunfo do Xingu e o Norte de Mato Grosso. "Este fato reafirma a indicação de uso e expansão dessas áreas abertas em anos anteriores."

Ao todo, os focos de calor foram detectados em área desmatada de 170,9 mil hectares, o equivalente a 43 vezes o Parque Nacional da Tijuca. É mais da metade do total devastado considerado pelo "Amazônia Protege" para mover as ações na Justiça Federal.

Acusados pelo MPF
Entre os supostos desmatadores que respondem a uma ação na Justiça Federal no Pará, e em cujas áreas devastadas foram detectados focos de calor, estão dois réus de Novo Progresso (PA), Edson Luiz Piovesan e Antonio Carlos Rodrigues de Oliveira.

A cidade paraense se notabilizou depois que um grupo de produtores deflagrou o "Dia do Fogo", série de queimadas que está sendo investigada pelo MPF, sob suspeita de ter sido intencional. O GLOBO não localizou os dois para que se defendessem das acusações.

A lista de supostos desmatadores, com detecção de queimadas nas áreas abertas, inclui ainda Hartaxerxes Roger Paulo Rocha. Ele foi acionado por desmatamentos de 779,7 hectares na região de Redenção (PA). A reportagem ligou para Hartaxerxes, mas não conseguiu contato.

Já Wilson José Mendanha foi acionado pelo MPF por desmatamentos próximos a Tucumã (PA). A área aberta em anos anteriores pegou fogo neste ano, segundo o Inpe.

- Eu tive uma terra lá, já faz oito anos que vendi. Fiz 20 alqueires de derrubada nela, o "trem" não queimou direito, e nunca mais voltei lá. Veio um "cabra" aqui, disse que era corretor e que tinham invadido lá. Vendi a área e pagaram um preço de banana verde. Não sei pra quem vendi. E, se alguém botou fogo lá, não fui eu - disse Mendanha ao GLOBO.

A madeireira Tigrinhos Indústria e Comércio de Madeiras, na região de Sinop (MT), também foi acionada pelo MPF por desmatamento ilegal. Imagens de satélite mostram queimadas nas áreas devastadas. Por meio de seus advogados, um dos sócios da madeireira, Lenoir Bachinski, negou ter havido qualquer tipo de queimada na região. Segundo a defesa, áreas próximas pegaram fogo, mas não as da madeireira. E eles dizem que o cliente tem autorização para desmatar.

Em 2014, Bachinski e seu sócio, Ivani Orlandi, assinaram um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público estadual em razão de fogo ilegal em 2 mil hectares de vegetação nativa. Eles se comprometeram a reparar os danos. Dois anos depois, um deputado de Mato Grosso apresentou moção de aplauso a Bachinski por ter madeireiras com "respeito à natureza ".

O programa que aciona supostos desmatadores na Justiça segue em curso. As ações das duas fases pedem R$ 5,09 bilhões em indenizações pelos danos ambientais.

A intenção do "Amazônia Protege", segundo a PGR, é fazer com que supermercados, frigoríficos e compradores de produtos da Amazônia deixem de adquirir carne e alimentos vindos de áreas desmatadas.

"O consumidor é um poderoso aliado nessa fiscalização e pode pressionar produtores e varejistas. Quem quiser comprar terras na Amazônia poderá identificar se a área desejada é alvo ou não de ação do MPF", diz o escopo do programa.

Em algumas ações, os réus não são identificados no momento da apresentação da acusação na Justiça. O objetivo é fazer com que eles apareçam e sejam responsabilizados no curso dos processos.


O Globo, 15/09/2019, Sociedade, p. 41


https://oglobo.globo.com/sociedade/amazonia-areas-cujo-desmatamento-levou-acoes-na-justica-foram-queimadas-neste-ano-23948650
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